ENTRE CAMPOS... UM OLHAR... UM CAMINHO

terça-feira, 16 de fevereiro de 2010

GOSTO DE COMBOIOS


Sim. Gosto de comboios e recordei com alguma saudade tal gosto na passada sexta-feira quando viajei no Alfa Pendular para Lisboa.

Recordo o cheiro das estações de comboios e a sua tranquilidade e silêncio, sempre interrompido pela passagem dos comboios e pela agitação da entrada e saída dos passageiros. Lembram-se das antigas bilheteiras com aquela máquina grande de obliterar a data naqueles coloridos bilhetes de cartão? Guardei muitos após cada viagem que fazia entre a estação de S. Bento, no Porto, e a estação de Esmoriz. E a arquitectura das estações portuguesas, sempre com belos azulejos e jardins bem arranjados, que eram mesmo razão de competição entre as estações em concursos nacionais? E que dizer daquela celebre palavra (também composta em azulejo) «RETRETES» que muitos sorrisos motivava? Sim, porque, com aquelas condições, eram de facto retretes.

Eu ainda cheguei a viajar nas velhas carruagens puxadas pela máquina a carvão. Lembro-me perfeitamente dessa viagem à Povoa do Varzim, promovida pelos meus avós maternos que assim corresponderam ao meu pedido para experimentar esses comboios.

Recordo também com saudade as conversas com o Sr. Victor Hugo (Chefe da Estação de Esmoriz) e com o Sr. Catarino (Chefe da Estação de S.Bento). Ambos suportavam estoicamente as minhas perguntas sobre comboios e respondiam a todas com o maior gosto. Aprendi muito com eles.

Gosto de comboios. Mas não é do Alfa que eu gosto. Há mesmo certas coisas que não consigo perceber. Fui confrontado com mais um aumento de preço, precisamente quando a qualidade das carruagens vai-se degradando. No W.C já não temos os mesmos adereços de higiene que outrora estavam disponíveis. Os preços praticados no bar são proibitivo e não é a simpatia das meninas que servem (sempre muito bem-vinda e que se mantenha) que paga a conta. Quando olho para a tabela de preços lembro-me sempre da justificação que muitos membros das claques apresentam para os furtos que praticam nas áreas de serviço das auto-estradas. Ainda que a mesma seja para mim inaceitável e tais actos inadmissíveis, confesso que não deixo de me recordar da célebre frase: «com aqueles preços merecem ser roubados.»

Para além disso, o Alfa Pendular tem as vantagens e as desvantagens da ausência de um ambiente «popular». Temos nele o silêncio e a tranquilidade para ler, trabalhar ou até dormir. Muitos trabalham mesmo no computador como se, a partir de um comboio, controlassem o mundo. O que é certo, é que já viajei ao lado de alguém que comprou e vendeu acções via Internet em várias bolsas do mundo durante a viagem para o Porto. E lá me foi explicando como tais operações bolsistas funcionavam. Todavia, no Alfa Pendular temos poucas possibilidades de ouvir conversas divertidas e nem sequer o pregão da senhora que ainda vende, no Intercidades, os pastéis de Tentúgal e as Tigeladas.

Reconheço que houve um esforço de promoção do comboio, até pelo facto deste transporte ser «amigo» do ambiente. Reconheço também que, de uma forma geral, há um pouco mais de conforto nos comboios actuais, embora, em alguns suburbanos, quem necessitar de WC terá certamente que usar o próprio bolso. De qualquer forma, em cada viagem de comboio que faço, mesmo no Alfa Pendular, recordo o meu gosto pelos comboios. Com o som compassado dos rodados de cada carruagem passando pelos trilhos vem sempre a recordação da ODE À POESIA. Um poema de Miguel Torga que não esqueço e aqui compartilho.

Vou de comboio...
Vou mecanizado e duro como sou neste dia;
E mesmo assim tu vens, tu me visitas!
Tu ranges nestes ferros e palpitas
Dentro de mim, Poesia!
Vão homens a meu lado distraídos
Da sua condição de almas penadas;
Vão outros à janela, diluídos
Nas paisagens passadas...
E porque hei-de ter eu nos meus sentidos
As tuas formas brancas e aladas?
Os campos, imprecisos, nos meus olhos,
Vão de braços abertos às montanhas;
O mar protesta contra não sei quê;
E eu, movido por ti, por tuas manhas,
A sonhar um painel que se não vê!
Porque me tocas?
Porque me destinas
Este cilício vivo de cantar?
Porque hei-de eu padecer e ter matinas
Sem sequer acordar?
Porque há-de a tua voz chamar a estrela
Onde descansa e dorme a minha lira?
Que razão te dei eu
Para que a um gesto teu
A harmonia me fira?
Poeta sou e a ti me escravizei,
Incapaz de fugir ao meu destino.
Mas, se todo me dei,
Porque não há-de haver na tua lei
O lugar do menino
Que a fazer versos e a crescer fiquei?
Tanto me apetecia agora ser
Alguém que não cantasse nem sentisse!
Alguém que visse padecer,
E não visse...
Alguém que fosse pelo dia fora
Neutro como um rapaz
Que come e bebe a cada hora
Sem saber o que faz...
Alguém que não tivesse sentimentos,
Pressentimentos,
E coisas de escrever e de exprimir...
Alguém que se deitasse
No banco mais comprido que vagasse,
E pudesse dormir...
Mas eu sei que não posso.
Sei que sou todo vosso,
Ritmos, imagens, emoções!
Sei que serve quem ama,
E que eu jurei amor à minha dama,
À mágica senhora das paixões.
Musa bela, terrível e sagrada,
Imaculada Deusa do condão:Aqui vou de longada;
Mas aqui estou, e aqui serás louvada,
Se aqui mesmo me obriga a tua mão!


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