ENTRE CAMPOS... UM OLHAR... UM CAMINHO

domingo, 23 de janeiro de 2011

Memória, esquecimento e silêncio...


Milan Kundera, na sua obra intitulada O Livro do Riso e do Esquecimento,destaca a profusão e o excesso de notícias como sendo uma razão relevante para que todas as pessoas se esqueçam de tudo ao fim de algum tempo.

Recordo esta ideia do escritor checo porque entendo que ela explica também alguns esquecimentos de que o povo português parece padecer.

Em recente comentário neste blogue recordei as palavras que o capitão Salgueiro Maia proferiu aos soldados da Escola Prática de Infantaria de Santarém, quando os motivava para o acompanharem até Lisboa, naquela que seria a marcha da libertação de Portugal do jugo de uma abominável ditadura. Este capitão de Abril disse:

"Meus senhores, como todos sabem, há diversas modalidades de Estado. Os estados sociais, os corporativos e o estado a que chegámos. Ora, nesta noite solene, vamos acabar com o estado a que chegámos! De maneira que, quem quiser vir comigo, vamos para Lisboa e acabamos com isto. Quem for voluntário, sai e forma. Quem não quiser sair, fica aqui!"

Foi com esta marcha sobre Lisboa e com a acção militar que comandou - e na qual pôs em risco a sua vida - que Salgueiro Maia trouxe, nas palavras de Vieira da Silva na sua célebre pintura sobre o 25 de Abril, a poesia para a rua.

No entanto, houve alguém que, há mais de 20 anos, recusou atribuir, a este militar de Abril, uma pensão do Estado português por serviços relevantes à pátria. Como a memória é curta - até pela razão apontada por Kundera, deixo aqui apenas alguns lembretes.





Pelos vistos, terá sido mais justo atribuir pensões a dois PIDES, um deles responsável pelas únicas mortes ocorridas no dia 25 de Abril de 1974 na Rua António Maria Cardoso.

Se este fosse um país decente, o povo português, hoje, tinha memória.

Se isto fosse um país decente, o povo português não aceitaria um confortável, mas ensurdecedor silêncio, sobre notícias de compra e venda de valores mobiliários e imobiliários que «gritam» por um cabal esclarecimento.
.
Se isto fosse um país decente, o «escutado» teria que explicar a sua metodologia da relação de «recado» para a comunicação social.

Voltando a Kundera, ao recordar a Primavera de Praga o escritor sublinhou que a luta do povo Checo contra a repressão desta manifestação em busca da liberdade seria sempre a luta da memória contra o esquecimento.

Em Portugal, Salgueiro Maia é memória. Por sua acção, a poesia veio para a rua. Tudo o resto é esquecimento...

sexta-feira, 21 de janeiro de 2011

Sob a Alçada da Isabel


O jornal Destak, na sua edição de 20 de Janeiro, cita declarações da Srª Ministra da Educação. A fazer fé neste diário gratuito, Isabel Alçada afirmou-se «surpreendida» por se «colocar crianças na rua para reivindicar», competindo tal tarefa à gestão dos colégios.

Não deve haver, por princípio, qualquer tipo de instrumentalização das criancinhas. Todos estão de acordo. No entanto, as manifestações observadas correspondem, de facto, a uma situação real que resulta das medidas aplicadas por Isabel Alçada. Assim sendo, surpreendente é ela ter ficado surpreendida em ver crianças na manifestação.

Na verdade, ainda hoje foi noticiado o fecho, já na próxima semana, de dezenas de escolas que vendo cortadas as verbas do Estado, estão já impossibilitadas de continuar as suas actividades lectivas. Consequentemente, serão as crianças que terão perturbado o seu percurso escolar, não só neste ano lectivo, mas também nos vindouros. Assim sendo, não serão, pois, reais os motivos para os seus protestos? Não estão elas prejudicadas com as medidas? Não terão o direito ao protesto só por serem jovens?

Eticamente deplorável é insinuar uma suposta manipulação das crianças pela colocação das mesmas numa manifestações - como se estas não tivessem já alguma consciência do que está em causa - tentando assim, com tal evocação, iludir aquilo que verdadeiramente é substantivo; ou seja; o corte das verbas às escolas com contrato de associação, com a inevitável morte de muitas delas.

Provavelmente entenderá a Srª Ministra que os meninos e meninas deveriam estar sob a sua alçada, escondidinhos, «varrendo-se» assim, para «debaixo do tapete», as consequências das medidas pelas quais é responsável?

Lamento muito que não se lembrem de quão vil é a manipulação das criancinhas quando estão ordeiramente sentadas no seu lugar (como se isso fosse verdade no quotidiano de escolas com uma indisciplina crescente) para assistirem às aberturas dos anos lectivos, apresentações de inovações - vulgo Magalhães - e outras iniciativas de propaganda política para os sound bytes da comunicação social.


E assim se faz Portugal...


quarta-feira, 19 de janeiro de 2011

Cortes presente... prejuizos futuros.


A família e a escola são duas instituições profundamente estruturantes dos processos de socialização e enculturação dos jovens. Todavia, e na sociedade actual, estas instituições competem cada vez mais com o grupo de pares, com as novas tecnologias - sobretudo a internet e redes sociais - e ainda com uma categoria de media sobretudo orientada para a promoção de um consumo específico destinado aos jovens e que configura os estilos destes. Para além de pressionados pelos filhos para a aquisição de bens que são os signos desses estilos, os pais sofrem angustiados com a perda da sua influência nestes processos. Assim sendo, exige-se de qualquer decisão política que não prejudique a dinâmica social destas duas instituições.

No entanto, uma visão meramente contabilística conducente a cortes orçamentais em prol da redução do déficit das contas públicas, levou o actual governo a decidir-se por um severo corte no financiamento às escolas com contrato de associação.

Bastariam os despedimentos que tal medida implicará e a inevitável situação dramática em que muitas famílias terão que sobreviver para demonstrar o quão chocante e insensível é esta intervenção governativa. Na verdade, é mais fácil asfixiar financeiramente as escolas e «lavar as mãos» face às consequências, do que ter a coragem de «mexer», de forma contundente, com as chorudas reformas vitalícias acima dos 4000 euros de alguns privilegiados do sector público e que custam ao Estado português, segundo o estudo publicado no Diário de Notícias, cerca de 22 milhões de Euros mensais. Parece que para resolver este problema, só resta mesmo, como alguém com as máximas responsabilidades neste país afirmou, esperar que tais beneficiários morram. Na verdade, quem defende hoje que os cortes são desiguais, por afectarem mais os pobres e não tanto os ricos, dá um fantástico exemplo http://aeiou.expresso.pt/cavaco-opta-por-pensoes-de-836410042=f626817

A perversidade de tais cortes vai, contudo, muito mais longe. Ela é fortemente desestruturante das famílias e da escola.

Relativamente às primeiras sabe-se que qualquer mudança de escola - inevitável para muitos pais face à sua impossibilidade de pagar propinas - pode ser fortemente perturbadora da rotina familiar, acarretando também um processo de adaptação dos estudantes a uma nova escola, a novos professores e a novos grupo de amigos.

No que à escola diz respeito, o governo argumenta que os contratos de associação foram feitos quando a rede de escolas públicas não era suficiente para cobrir as necessidades dos jovens estudantes. Agora, com uma rede escolar alargada, não será necessário manter tais contratos, uma vez que os jovens portugueses têm já disponível, perto de si, a escola que necessitam. Fica, pois, clara, esta visão instrumental de usa e deita fora que esquece dois aspectos fundamentais:

- sendo privadas, as escolas prestam um serviço público. E considerando os rankings de escolas que foram publicados, prestam-no melhor do que as escolas públicas. Com efeito, estão ameaçadas muitas escolas bem classificadas nos tais rankings. Quem os valorizou, não pode agora desvalorizá-los ao sabor dos seus intentos políticos e para esconder o aniquilamento de instituições escolares de qualidade.

- só existe escola pública, e por maioria de razão, só existe Estado português, porque o mesmo é financiado pelos impostos dos cidadãos e da iniciativa empresarial privada.

Sem prejuízo do que foi referido, acresce-se ainda que o corte de verbas às escolas com contrato de associação destruirá o ensino privado, mas também degradará o ensino público. A tal rede escolar ampliada, mas muitas vezes sobrelotada e com um número excessivo de alunos por turma, receberá mais estudantes, numa época em que os cortes anularão o estudo acompanhado, o desporto escolar e demais actividades complementares às normais actividades lectivas. Por conseguinte, depois da destruição da qualidade do ensino privado, virá a decadência do ensino público.

Esta medida justifica ainda outras considerações. Depois de sabermos o que se gasta com os mais de 13000 organismos públicos, com as empresas públicas, com as parcerias público-privadas, com as derrapagens das obras, com os prémios e ordenados de altos quadros do Estado, os pareceres pagos a peso de ouro e ainda com a insistência em obras públicas como o aeroporto e o TGV, é incompreensível, porque absurdo e imoral, o corte que se anuncia. Isto, por parte de quem criticava a política do betão e tinha a educação como paixão.

Esperava-se, da parte do Presidente da República, que perante tal medida, assumisse as suas responsabilidades, como o próprio prometeu. Porém, e depois de ter formalizado um suposto acordo com o governo, a lei foi promulgada. Não se sabe se a portaria posteriormente publicada pelo governo desvirtua o suposto acordo alcançado. Se assim é, cabe ao defraudado denunciar claramente tal situação, para que o povo português saiba com quem lida.

Não sendo assim, assistimos ao ridículo de vermos um Presidente da República a confortar protestos contra uma lei que ele próprio assinou, quando se esperava um veto enérgico e não uma promulgação frouxa. Mas isso também não é surpreendente em alguém que não veta leis, optando antes por promulgá-las e depois criticar o que promulgou, numa clara desvalorização e apoucamento das leis da república, pasme-se, pelo presidente da mesma.
*
Não tenho qualquer intenção premonitória nem perfilho teses especulativas. Estou, no entanto, plenamente convencido que estes cortes, com o dinheiro a entrar pela porta e algum dele a sair pela janela para pagar subsídios de desemprego e outros gastos, terá repercussões na qualidade da educação, com os consequentes custos futuros não contabilizáveis, mas penalizantes para Portugal.

sábado, 8 de janeiro de 2011

O «ESTADO» A QUE ISTO CHEGOU


Diz-se que esta foi uma das frases com que Salgueiro Maia - antropólogo e capitão que dirigiu as operações militares que foram conducentes ao derrube da ditadura em 25 de Abril de 1974 - iniciou o seu discurso mobilizador dos militares, ainda dentro da Escola Prática de Infantaria em Santarém.

Esta asserção tem hoje toda a pertinência quando lemos as doze páginas iniciais da edição de ontem do Diário de Notícias. A mesma inicia a publicação de uma investigação que retrata o Estado Português, tendo a mesma sido efectuada por um grupo de profissionais deste jornal.

A primeira pagina apresenta, como estimativa, a existência de 13740 organismos públicos. Em boa verdade, os investigadores constataram a dificuldade do próprio Estado Português em saber, com a necessário rigor, o número de organismos públicos que o constituem, precisamente porque os mesmos não estão inventariados.

Isto, por si só, é demonstrativo do descontrolo e do estado a que isto chegou. O próprio Estado Português não sabe com exactidão os organismos que detém. Acresce-se ainda que o mesmo jornal destaca que só 1724 destes organismos publicaram contas e apenas 418 foram fiscalizados.

Certo é que tais números foram já desmentidos. Foi também referido que todos os organismos apresentam contas em função da obrigação legal de o fazer. No entanto, e apesar da reserva que possa existir sobre os números apresentados, a investigação proposta não deixa dúvidas quanto ao número excessivo de institutos, fundações, empresas públicas, associações, orgãos de administração local e regional que, «aspiram» o dinheiro dos contribuintes, são muitas vezes coincidentes e conflituantes nas suas funções. Muitos lugares bem remunerados a respaldo de tais instituições, com a Fundação Cidade de Guimarães como exemplo se considerarmos os 14300 euros mensais que a sua administradora principal ganhava, a fazer fé no que foi publicado pelo Diário de Notícias.

Para além dos organismos públicos, esta investigação destaca os custos dos pareceres - nos últimos sete anos custaram cinco vezes mais do que os estádios do Euro 2004 -e dos serviços de consultadoria, o desperdício nas compras, os 28 ou 29 mil carros comprados, as despesas em viagens, concertos com Tony Carreira, as despesas com flores, artes e tapetes.

É por isso que chegamos a este estado.

Mas a demonstração da má governação, do descontrolo e despesismo do Estado em nada legitima aqueles que perfilham o seu aniquilamento a favor de um paradigma capitalista liberal e liberalizado, sem controlo e regulação política, que configura, como demonstraram Naomi Klein em Doutrina do Choque e Joseph Stiglitz em Globalization and its Discontents, o capitalismo da desgraça, quiça responsável pela crise global que vivemos.

segunda-feira, 3 de janeiro de 2011

DISCURSOS... APENAS


Ouvi atentamente a mensagem de Natal do Sr. Primeiro-Ministro e a mensagem de Ano Novo do Sr. Presidente da República.

Como não encontrei nas mesmas nada de novo que possa ser entendido como significativo, estou cada vez mais convencido que as mesmas são, na actualidade, um mero ritual que se repete ano após ano e que vale sobretudo como formalidade significante, mas já com muito pouco significado para os portugueses.

Na verdade, estas mensagens são um bom exemplo do que Foucault escreveu na sua obra intitulada A ordem do discurso. São discursos que sempre foram ditos, são ditos e continuarão a ser ditos, pois resultam de uma ordem discursiva institucional e consequentemente cerimonial.

Assim sendo, tais mensagens são sobretudo valorizadas na arena da luta dos partidos políticos, com os prosélitos dos mesmos, como sempre, a exaltarem as virtudes da mensagem quando a homilia é da sua capela e a encontrarem falhas e omissões quando a voz que ecoa é do demo da capela ao lado. Mas ambas perseguem os mesmos interesses de conversão ao voto para que, com a legitimação deste, se defendam melhor objectivos carreiristas.

Acredito (pouco) na pragmática dos discursos. Mas admito até que a sua enunciação possa de alguma forma induzir ou alterar práticas. No entanto, se nada for feito na condições objectivas de vida das pessoas, de pouco servem os discursos bonitos dos políticos. Eles são, como afirmou José Manuel Coelho, similares às palavrinhas caridosas das Miss Mundo. Todos estamos de acordo com eles, apesar de não resolverem nenhum problema concreto.

Neste tempo de videocracia, em que a democracia se joga também em palavras televisivas que são mais um elemento da confrangedora luta entre partidos, o povo português espera... espera... espera... pela resolução concreta dos seus problemas.
*
Era também conveniente que cada um de nós fizesse também qualquer coisinha melhor no seu dia-a-dia para melhorar isto. Não acham?


sábado, 1 de janeiro de 2011

BOM ANO DE 2011

Nas primeiras horas de um novo ano regresso a este espaço na blogosfera.

Vicissitudes várias afastaram-me durante longo período do Entre Campos. Trabalhos diversos, artigos para concluir e um 2010 que se afigurou o Anus Horribillis da minha saúde dificultaram uma presença regular neste espaço.

Escrever por escrever apenas para preencher este espaço não seria até tarefa difícil. No entanto, considerando como premissa que as palavras são a voz do pensamento, pretendo que este espaço partilhe algumas reflexões e essas não se compadecem com uma periodicidade pré-determinada.

Parafraseando um verso de Eugénio de Andrade, não gosto de gastar as palavras pela rua. Espero das mesmas a mediação entre leitores e as minhas ideias. E como escreveu Fernando Pessoa recorrendo ao heterónimo Alberto Caeiro, «pensar incomoda como andar à chuva quando o vento cresce e parece que chove mais.»
*
Bastaram poucas horas deste novo 2011 para nos lembrar a bestialidade humana. Hobbes tinha mesmo razão.

Mas como para além da realidade consideramos a nossa percepção sobre a mesma, talvez seja apenas uma questão de perspectiva pessoal sobre as notícias que nos chegaram.

Por isso, que ninguém se resigne.

Deixo, por isso, uns breves versos de Miguel Torga no poema intitulado Sísifo. Esperemos que não seja sísifico o ano que agora se inicia.


Recomeça...
se puderes,
sem angústia e sem pressa.

E os passos que deres
nesse caminho duro
do futuro
dá-os em liberdade.

Enquanto não alcances,
não descanses.

De nenhum fruto queiras só metade.


Bom ano de 2011.